
O Blackface (do inglês, black negro e face rosto) é uma prática teatral que surgiu a meio do século XIX e que consistia em representar de forma estereotipada personagens afro-americanas. O tipo de comédia, que acabou por se tornar num género de teatro, propagou-se pelos shows minstrel, que tinham uma audiência nacional, sendo bastante populares até aos anos 60, altura em que surgiu o Movimento dos Direitos Civis dos negros e que acabou por ditar o fim do Blackface.
Foram mais de 100 anos a ridicularizar a identidade negra, através de uma tradição altamente enraizada, popular e que acabou por contagiar outros mercados, como o britânico, onde este tipo de teatro durou mais tempo do que nos EUA, terminando em 1978. Há apenas 41 anos.
Esta introdução sobre o Blackface surge na sequência da última polémica que envolve marcas de renome como Gucci ou Prada.
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Estas duas marcas lançaram dois produtos inspirados na prática teatral que humilhou e estereotipou a comunidade negra durante mais de 100 anos. A mesma comunidade que, atualmente, é uma das mais poderosas a nível de consumismo e de disseminação de cultura.
A Gucci, fundada em 1921 por Guccio Gucci, em Itália, é uma marca premium cobiçada desde sempre por astros do entretenimento mundial. Contudo, após um conflito interno, na década de 1980, a popularidade da marca caiu a pique e foi salva pela comunidade hip hop nos Estados Unidos. A brand, a par de tantas outras, era utilizada para demarcar um posicionamento de artistas cuja base de experiência incidia na marginalização e pobreza. Os rappers queriam ostentar que conseguiam comprar o mesmo que o branco rico, com influência, comprava.
Tudo começou, nos anos ’80, quando Dapper Dan se tornou na pedra angular da ostentação fashion do movimento. O alfaiate autodidata usou o logotipo de casas de moda de luxo e criou roupas, e até interiores de carros, para vários rappers da altura. Eric B e Rakim foram alguns dos nomes que empurraram a Gucci, pelas mãos de Dapper Dan, para a ribalta do movimento urbano.

Apesar de uma grande parte da comunidade não ter poder de compra suficiente para adquirir peças de luxo, quem nunca viu um negro com um artigo Gucci que à partida sabemos que é falso? Essa necessidade de posse, mesmo que através de artigos provenientes da contrafacção, têm um impato negativo a nível financeiro para a marca em si mas este nunca é superior às vantagens que a marca tira desse marketing gratuito e que contribui para a sua crescente popularidade no seio do público em geral.
Atualmente, os consumidores negros estão a “falar” diretamente com as marcas de uma forma sem precedentes. A título de exemplo, a Louis Vuitton disparou as suas vendas depois da contratação de Virgil Abloh, em março de 2018, para liderar a sua linha masculina. Uma vez mais, fazendo-se valer também de nomes da comunidade hip hop, como Kanye West ou Rihanna, para chegar aos mais jovens.
O grupo LVMH, que detém a icónica casa de moda francesa, viu os seus resultados anuais atingirem novos recordes em 2018 e as vendas da Louis Vuitton aumentarem contra todas as probabilidades, considerando a conjuntura económica do mercado internacional. Dior, Bulgari e Moët & Chandon, também do mesmo grupo, terminaram o ano com um crescimento robusto de 11%, após um aumento de 12% em 2017, quase o dobro do mercado mundial, cujo aumento é estimado em torno de 6%. A sua receita operacional subiu 21%, alcançando pela primeira vez a marca de 10 mil milhões de euros.
Por que é que a influência que a comunidade negra tem nestas marcas não é tida como relevante pelas próprias? Spike Lee explica: porque a maioria não tem negros a trabalhar no backstage em lugares de destaque e que se preocupem com as sensibilidades ou preocupações intrínsecas a essa comunidade.
“Eu, Spike Lee de mente e de corpo sadios não usarei mais Prada ou Gucci até que contratam designers negros”. É óbvio que eles não têm ideia quando o assunto se trata de imagens de ódio, racistas como blackface,” escreveu o realizador nas suas redes sociais. Começou assim o apelo ao boicote contra as duas marcas que usaram imagens alusivas ao blackface. A Prada adornou uma mala com um macaco castanho de lábios exageradamente vermelhos e a Gucci criou uma camisola preta, cuja gola alta sobe até abaixo do nariz e que na boca tem uns lábios novamente pintados de um vermelho vivo.
Várias vozes dentro do showbizz levantaram-se contra aquilo que foi tido como uma afronta à comunidade negra. 50 Cent foi um deles.
No vídeo acima, publicado no Instagram, o rapper, enquanto queima uma t-shirt de 350 dólares, escreveu: “Tenho de me livrar de tudo o que é Gucci que tenho cá em casa. Já não apoio mais a marca deles”.
Soulja Boy também apoia o boicote à empresa e anunciou que vai retirar o logotipo que tatuou no rosto e uma outra tatuagem inspirada pela marca de luxo italiana. “Já comecei o processo [de remoção]. Tenho de voltar mais duas vezes. Já tive três sessões”, disse o artista à TMZ.
Depois da polémica estalar, no caso da Gucci, já houve um pedido de desculpas público e a camisola, que custa 890 dólares, foi retirada de todas as lojas físicas e online.
Contudo, o pedido de desculpas, tantas vezes repetido, já não é suficiente. São várias as personalidades, como Beyoncé, que têm optado por dignificar o empreendedorismo negro ou marcas detidas por negros para criar uma rede de apoio influente a nível social e económico dentro da comunidade. O objetivo é dar poder e visibilidade a uma das comunidades mais consumistas do mundo. É criar consciência dentro desse consumismo, porque não basta parecer que se tem poder, é preciso tê-lo efetivamente para se começar definitivamente a respeitar a diversidade.
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